Em 2015, eu estive envolvido no processo de transformação ágil de um tradicional banco britânico, em Londres. Eles estavam super inspirados pelas histórias de outros bancos, como ING e Capital One, que haviam feito uma mudança brusca em direção à agilidade. Eles tinham um propósito (why) muito claro e inspirador, elaborado com o apoio de ótimos profissionais e seguindo a ideia do Golden Circle, do Simon Sinek. No entanto, infelizmente, após alguns poucos meses, aquele propósito já não inspirava mais ninguém pois não se mostrava coerente com a realidade daquele banco e, como o desdobramento de tudo (how, what) tinha partido de tal propósito, tínhamos ali uma bela confusão.
O propósito inspirador de se tornar um banco mais “moderninho” e ágil, de crescimento exponencial, não se mostrou adequado à identidade e realidade daquela empresa, não se mostrou em sintonia com seu contexto. Ela estava se negando a enxergar, aceitar, e se aproveitar da sua verdadeira identidade, e mesmo vocação.
Concluímos naquele momento que o melhor seria parar tudo e repensar nossa estratégia para a agilidade nos negócios daquela empresa. Nesse processo de recomeço, definimos que a primeira coisa que deveríamos fazer seria colocar os “pés no chão”, entendendo exatamente quem éramos e quais eram as características fundamentais do nosso contexto. Entender o que nos tinha trazido até aqui, o que nos fazia único, e, para alcançar uma maior agilidade, começar a pensar mais em exaptação e emergência do que em substituição.
“Não adianta termos um propósito, travestido pelo mundo externo, que não represente honestamente a nossa realidade. Ter um propósito inspirado pela Apple não fará de ninguém aqui um Steve Jobs.” foi a frase arriscada que utilizei em uma reunião para tentar abrir-lhes os olhos.
Movidas pela inspiração
No livro “Start With Why”, Sinek aponta que as pessoas não compram seus produtos simplesmente atraídos por suas funcionalidades, e nem seguem uma iniciativa apenas inspirados por suas ações, mas sim pelo propósito que cada produto ou iniciativa representa, a razão ou causa por trás de tudo aquilo.
Essa percepção, a meu ver, faz muito sentido. No entanto, ele a utiliza para sustentar que, portanto, deveríamos pensar nossos produtos, ideias e iniciativas sempre começando pelo propósito, pela razão, por algo que fosse capaz de inspirar e engajar nossos seguidores, e é aqui que acredito que ele “perca a mão”.
Na iniciativa que mencionei antes, no banco britânico, o propósito (why) apontava para sermos um banco mais inovador e moderno, uma instituição mais globalizada, sintonizada com a nova geração — que facilitasse a vida dos clientes, dando comodidade a eles, e provendo uma maior flexibilidade aos colaboradores. Bonito, né? Tudo isso inspirou bastante as pessoas envolvidas.
No desdobramento para o como (how) e o que (why), o que aconteceu foi: Sai imagem de robustez, entra a de inovação e modernidade. Sai departamento, entram tribos e squads. Sai projeto, entra produto. Sai cinza, entra laranja. Sai MS-project, entra Jira. Sai foco nos clientes fidelizados, entra abertura para todo o mercado. Sai política para funcionários de carreira, entra a de funcionários móveis e flexíveis. E muitas mudanças seguindo esta linha, e, sim, alinhadas com o propósito.
Ganhou agilidade? Sim, mas também uma tremenda perda de identidade e uma viagem à beira do caos com muito mais problemas e dificuldades do que tinham antes.
Frustradas pela ilusão
Uma das principais razões dadas para começar pelo propósito está relacionada ao ganhar engajamento e motivação. Mas, como bem sabemos, mesmo quando não admitimos: tudo que é desenhado primariamente para motivar e engajar pessoas, inevitavelmente, esconde algo sujo por trás.
Na maioria das vezes, infelizmente, desenhamos “propósito” na busca por algo inspirador, belo, que tenha glamour. Nessa linha, criamos com frequência propósitos fictícios que, ao passar o efeito alucinógeno inicial, moverá aquele batalhão de pessoas, do engajamento para a crítica, da motivação para a frustração, da empolgação para a ilusão.
Talvez você esteja pensando, “mas aí está o erro, você precisa criar um propósito alinhado com a realidade da empresa”. E eu concordo! Mas, como fazer isso se nós não aceitamos ou sequer conhecemos nossa realidade? Como fazer isso — de verdade—se nós começamos pelo propósito?
Perceba que minha proposta aqui não é desqualificar a importância do propósito, mas sim desencorajar a ideia de COMEÇAR pelo propósito. Minha sugestão é começar pelo contexto (where), para então movermo-nos ao propósito com os pés no chão.
Começar pelo contexto nos dá a clareza de que estamos partindo da mesma página, enxergamos a realidade de forma límpida, e não romantizada. Qualquer propósito, por mais inspirador que seja, se não me passa a clareza de que estamos partindo do mesmo ponto, soa, cedo ou tarde, como ficção, e deixa de transmitir credibilidade, virando #piadainterna.
No caso do banco, quando reiniciamos pelo contexto, tivemos que encarar algumas características da nossa realidade que não gostávamos tanto de enxergar. Algumas não eram tão excitantes, outras até não desejadas — mas que estavam ali e faziam parte da identidade daquela empresa. Gostássemos ou não, elas estariam no nosso caminho. Mas, veja, também descobrimos coisas super interessantes do legado da empresa, com boas oportunidades, mas que também estavam escondidas.
Por fim, chegamos a um propósito sem tanto glitter, mas alinhado com nossa realidade, e que seria capaz de dar ao banco a agilidade suficiente para alcançar seus objetivos de negócio.
Uma forma simples de começar com contextos
Atualização (2023): Na época da experiência e publicação desse texto, a prática Estuarine Mapping (Dave Snowden), que hoje considero ideal para trabalharmos no “where”, ainda não existia. Hoje, utilizo-a como central para esse trabalho.
Há diversas formas de se trabalhar com contextos, desde utilizando teorias e técnicas mais aprofundadas, como fazemos no BUILD (BUsiness agILity Design), até a aplicação de dinâmicas mais simples que, por mais que não sejam acuradas e aprofundadas em significação, minimamente trazem as pessoas para conversas mais abertas sobre este assunto.
Uma técnica bem simples, que desenvolvi enquanto apoiava a transformação deste cliente, é o “The Context Tale” — uma mistura de Elevator Pitch, ABT (And-But-Therefore), Experimental Narrative, com alguns pretensiosos ingredientes dickenianos.
Nessa técnica, colocamos as pessoas para conversar abertamente sobre alguns pontos decisivos para o reconhecimento do nosso território, do nosso contexto. Justamente por isso é importante que quando utilizada, seja feita em sessões cautelosamente facilitadas, pois temos aqui um cenário complexo de facilitação. Técnicas de Learning 3.0, Liberating Structures e Cynefin podem ser úteis aqui.
Com um olhar ingênuo, podemos avaliar esta técnica apenas como mais um template a ser preenchido, mas quando analisamos com o devido cuidado o poder das lacunas a serem preenchidas, percebemos que para cada uma delas podemos avançar em sessões de ricas discussões e alinhamento.
No banco mencionado, o resultado foi algo próximo do exemplo a seguir:
Existe um lugar chamado “Sir Bank” onde se tomam decisões considerando a confortável situação financeira da empresa. Ao longo dos últimos anos, neste lugar, os negócios cresceram continuamente enquanto se mantinha uma cartela fidelizada de boa parte dos clientes mais ricos e poderosos do Reino Unido. Clientes têm dito que a segurança que sentem ao estar em um banco centenário e tradicional é o que os atraem estar aqui.
De fato, seus atuais líderes são experientes executivos do mundo financeiro que acreditam que a melhor forma de liderar um negócio seja através da conquista de grandes contas e adequado controle interno, enquanto seus investidores ambicionam um faturamento mais agressivo e uma manutenção na liderança do mercado.
Atualmente, este lugar opera majoritariamente em um contexto complicado de negócios, já que seu sucesso têm vindo em grande parte a partir das ótimas análises realizadas por especialistas da área. Recentemente, eles têm encontrado muita dificuldade em continuar atraindo e engajando estes especialistas, que têm preferido trabalhar em operações mais inovadoras e arrojadas.
Perceba que a estrutura desta técnica deixa um estratégico espaço pra inclusão e descoberta de controvérsias. Elas são muito importantes para entendermos verdadeiramente um contexto mesmo quando ainda em formato de rumor (pretendo abordar este assunto em mais detalhes em um próximo artigo).
No entanto, que fique claro: o objetivo desta técnica não é, de forma alguma, substituir um completo processo de entendimento de contexto como fazemos no BUILD durante a etapa Sense. Ao invés, a ideia aqui é só aproximar as pessoas do assunto, e fazer com que, ao menos, elas conversem sobre o contexto antes de definirem o propósito.
No banco, o novo propósito, desenhado a partir do contexto, apontou para metáforas que deixavam claro que o jeito de ser da empresa tinha que se manter com toques marcantes de elegância, controle e, sim, riqueza econômica. Qualquer modernidade tinha que ser desenvolvida a partir daqui. Ponto.
Conclusão
Parece que, majoritariamente, as empresas se sentem na obrigação de terem um propósito espetaculoso, seguindo receitas inspiradas pela Apple, Google, Amazon, etc. Elas muitas vezes ignoram quem são, seu território, suas pessoas, seu mais verdadeiro contexto.
Na hora de definir um propósito, por mais que seja mais motivador olhar pra fora ao invés de pra dentro, não esqueça que esse também pode ser o primeiro passo para um universo de frustrações coletivas.
Conhecermos o propósito, seja de um indivíduo, produto ou empresa, é extremamente importante para criarmos uma maior conexão e senso de direção com todos os envolvidos. No entanto, tal propósito precisa ser coerente com nossa realidade e verdadeiro com nossas intenções, e é aqui que descobrimos as contraversões que definem a nossa identidade como empresa.
Essas descobertas, dificilmente acontecerão se você começar pelo propósito (why). Ao invés, convido você a fazer um experimento: que tal começar pelo contexto (where)?