Fordlândia é um “distrito fantasma” incrustado no coração da amazônia, mais especificamente no centro-oeste paraense. Ele foi criado por Henry Ford, na década de 20, que almejava construir em outro país um novo território para nutrir nas pessoas o sonho americano. Neste caso, apenas para constar, um sonho que pudesse lhe beneficiar com uma grande quantidade de borracha capaz de baratear a produção de seus carros em Detroit — naquele momento ameaçada pela indústria britânica.
Ford pré-fabricou todos os elementos de uma cidade inteira nos Estados Unidos e os enviou em dois grandes navios para o Brasil, juntamente com profissionais especializados em diversas áreas — da gestão à produção, da engenharia à medicina. Eram casas pré-fabricadas, no padrão norte-americano; comida enlatada, no padrão norte-americano; processos pré-definidos, de acordo como funcionavam as fábricas nos Estados Unidos; e outras tantas coisas, sempre seguindo o padrão norte-americano.
No livro “Fordlandia: The Rise and Fall of Henry Ford’s Forgotten Jungle City”, o projeto é apresentado como um dos maiores fracassos de Henry Ford. Sua estratégia ignorou a geografia amazônica, a abundância de alimentação natural disponível, os hábitos regionais, e todo o histórico daquelas pessoas.
Mas por que não deu certo? Hoje observamos, através de coerência retrospectiva, que a ignorância de contexto era tamanha que eles sequer se esforçaram para aprender com os locais coisas básicas, como o processo simbiótico das seringueiras na Amazônia. Além disso, julgavam que aquele povo se maravilharia ao viver como um típico americano em uma “American little town“. Eles ignoraram o contexto cultural, o que acabou por causar a revolta das pessoas em um evento conhecido como “quebra-panelas” , e também o contexto natural, o que causou a invasão de pragas por toda a plantação de seringueiras, culminando no abandono precoce do projeto.
Mas, o que isso tem a ver com o Manifesto Ágil?
Recentemente, Andy Hunt, um dos autores do Manifesto Ágil, compartilhou em suas redes sociais a percepção de que através de um bom entendimento de contexto conseguiríamos melhor definir quais métodos utilizar em cada situação, tendo inclusive a capacidade de observar quando Agile deixa de ser uma boa opção.
“Talvez deveríamos ter incluído isso (contexto) no topo dos quatro princípios (do manifesto)”, concluiu.
Alguns dias depois, Simon Wardley, criador dos Wardley Maps, foi além dizendo que empresas que seguem Agile em toda sua extensão, ignorando outros métodos e escolas de pensamento, nunca conseguirão ser verdadeiramente ágeis, o que ecoa com o que publiquei em “Todos os negócios precisam de agilidade, mas nem todos precisam de Agile”.
De fato, penso que o problema em si não está na natural incompletude do Manifesto, mas sim no nosso desejo de torna-lo uma solução que extrapola contextos.
O problema, temos de admitir, está na nossa limitação em entender e responder aos contextos de uma forma mais racional e menos dogmática.
Mas, é lógico que a gente sempre olha para o contexto!
Lembro que bem no início do movimento Agile, pelo menos aqui no Brasil, toda vez que abordávamos os gerentes de projetos para falar de agilidade, a resposta que recebíamos era sempre: mas é lógico que agilidade é importante, é lógico que somos ágeis! Para eles era difícil admitir uma distância entre o que o Manifesto dizia e o que eles praticavam, “como assim essas pessoas estão dizendo que não somos ágeis?”
Na mesma linha, hoje em dia toda vez que eu falo sobre contexto, a resposta que recebo é: “Mas é lógico que consideramos o contexto! Como assim essas pessoas estão dizendo que não partimos do contexto?”
A verdade é que entender e responder a contextos, infelizmente, não é uma prática tão trivial quanto a maioria pensa. Como já falei em “Quando os rumores destroem um processo de transformação” e também em “Quando nossas propensões nos acorrentam”, somos presas fáceis para os rumores sociais e para as nossas propensões — e com frequência manipulamos sutilmente as decisões, induzindo as pessoas do contexto a convergirem às nossas preferências.
Então, como aprender mais sobre contextos?
O Cynefin, criado por Dave Snowden, é um das peças centrais para boa parte dos nossos processos de entendimento de contextos e tomada de decisão aqui na Emergee.
Ele é extremamente poderoso, mas conhecido massivamente apenas na sua superficialidade. Isso significa que muitas das pessoas que o conhecem, sabem falar sobre os seus cinco domínios (na maioria das vezes focando apenas em quatro deles), mas não compreendem suas áreas limiares, dinâmicas e métodos. Isso faz com que essas pessoas, ingenuamente, acabem por utiliza-lo mais para categorização do que para compreensão de contexto.
Um de seus métodos, talvez o mais trivial e didático de todos, é o Four-Points, que pode ser útil para você dar seus primeiros passos com sense-making e com isso aguçar um pouco o seu entendimento dos contextos.
Esse método tem potencial, desde que bem facilitado, de inibir as propensões existentes, a partir de uma reflexão coletiva sobre como enfrentar cada uma das situações problemáticas de acordo com a sua mais verdadeira natureza.
Você pode conhecer mais sobre como atuar em cada um dos domínios do Cynefin baixando gratuitamente nosso e-book. Além disso, se quiser dominar alguns desses métodos através de uma fonte segura de aprendizagem, vale a pena dar uma olhada no treinamento “Cynefin Basecamp”, oficial da Cognitive Edge.
Conclusão
A realidade do passado e do presente de Fordlandia é muito diferente daquela idealizada por Henry Ford. A prática que ignorou o contexto resultou em opressão, frustração e abandono.
Nos dias atuais, frameworks, métodos e, acredite, “mindsets” para agilidade, vêm sendo pré-fabricados em todos os cantos do mundo. Eles não são enviados em navios, mas seus defensores garantem conhecer a forma como empresas deveriam funcionar para serem mais ágeis. Eles definem quais práticas e papéis você deveria ter; no que seu negócio deveria ser centrado; como você deveria organizar as pessoas e processos e muito mais. Pois é, dizem isso conhecendo praticamente nada do seu contexto.
O Cynefin, com uma visão agnóstica para práticas, se mostra uma excelente alternativa para nos ajudar a encontrar a estratégia mais apropriada para cada contexto. Sem vieses, sem propensões.
De fato, acredito que não precisamos de um novo manifesto; mas se eu tivesse que forjar um novo, eu o faria com uma linha só: “Do contexto para a prática, e não o inverso”.
Curiosidade
Eu nasci em Altamira (PA), onde vivi até meus 10 anos de idade. Tenho uma vaga lembrança dos adultos comentando sobre a história da “América da Amazônia”, como chamavam Fordlândia. Em conversa recente com meu pai, soube que muitas pessoas daquela região viveram até o fim de suas vidas com a esperança de que, em algum momento, os americanos retornariam para tornar real aquela bela imagem vendida e idealizada por Henry Ford — o que nunca aconteceu.