Neste artigo procuro apresentar os Temas Organizacionais que fazem parte do BUILD (BUsiness agILity Design) e a forma com que eles são aplicados a partir da Teoria de Emaranhamento (Entanglement).
Para ilustração, trago detalhes dos trabalhos de Brian Eno, principalmente daqueles que se conectam com a aplicação da complexidade na forma com que fazemos no BUILD.
Por ser um artigo um tanto denso, será melhor aproveitado por aqueles que já tiveram contato prático com o BUILD ou que acompanharam de forma cuidadosa meus últimos posts sobre o tema.
Conhecendo Brian Eno
Brian Eno é indiscutivelmente um dos maiores artistas contemporâneos. Talvez você pouco tenha ouvido falar sobre ele, mas certamente já teve contato com algo influenciado direta ou indiretamente pelo seu trabalho.
Devido à minha paixão pela música de David Bowie, tive contato com o trabalho de Brian Eno, o produtor, ainda nos meus vinte e poucos anos, enquanto estudava a história por trás da produção dos álbuns da “Trilogia de Berlim” de Bowie. Nessa mesma época, comecei também a apreciar Brian Eno, o músico, conhecendo seu trabalho no Roxy Music, me deliciando com verdadeiras obras-primas da sua carreira solo, como o álbum “Another Green World” (1975), e tentando me conectar com seus trabalhos sonoros mais experimentais, como “Ambient 1: Music for Airports” (1978). O que eu não poderia imaginar é que, já depois dos meus quarenta e pouco anos, eu encontraria no material de Brian Eno, agora o artista-cientista, uma fonte riquíssima sobre complexidade aplicada, destacando seus trabalhos com obliquidade, emaranhamento e estética — justamente pontos críticos para meu atual campo de pesquisa e experimentação: a agilidade nas organizações.
Sobre Emaranhamento
Muitos dos avanços científicos que tivemos nas últimas décadas só ganharam tração a partir do momento que diversas matérias e campos de estudo, até então exploradas e aplicadas de forma separada, começaram a ser emaranhadas, e não apenas conectadas ou alinhadas.
Por conexão e alinhamento, me refiro às situações onde o processo de divergência/convergência nasce de uma pergunta direta e é realizado de forma local, para então, depois, ser disponibilizado para outras áreas de conhecimento. Por exemplo, artistas trabalham no seu “território” em um processo contínuo de divergência/convergência, até que geram uma descoberta (arte) que pode então ser utilizada por cientistas ou engenheiros. Temos aqui um alinhamento, uma conexão entre as matérias arte e ciência, ou engenharia.
Por emaranhamento, ao invés, me refiro às situações onde o processo de divergência/convergência nasce a partir de uma questão maliciosa (wicked question), e se aplica de forma a ignorar os limites entre as matérias, emaranhando-as de forma a contaminarem-se irreversivelmente. Por exemplo, artistas e cientistas trabalham continuamente em divergência/convergência, até que geram um descoberta a qual não se consegue facilmente definir nem como arte, nem como ciência.
Nesta linha, o trabalho de Brian Eno se torna um singular campo de estudo sobre emaranhamento por, paradoxalmente, reconfigurar os limites entre luz, espaço, som, e arte. Por exemplo, seu trabalho “77 Million Paintings” é de difícil definição, justamente devido ao emaranhado de matérias exploradas. Neste caso, poderíamos definir o resultado deste trabalho como um software? Ou arte? Ou ciência? Música? Talvez um conjunto de vídeos? Pinturas? Ou seriam apenas montagens…? Sim ou não, seriam ambas respostas plausíveis para todas estas perguntas.
Eno emaranha elementos naturais e culturais da arte e de outros campos, enquanto flerta com o popular e o experimental, IGNORANDO os limites imaginários entre tais elementos.
O assunto vem sendo explorado, agora de forma consciente, através de pesquisas, experimentos e aplicações por diferentes vozes ao redor do mundo, algumas apontando inclusive que estamos entrando em uma “Era de Emaranhamentos”.
Emaranhamento nas Organizações
Ok, hora de “aterrissar” com o assunto e conversarmos sobre a presença dos emaranhamentos nas empresas, e de que forma podemos utiliza-los a nosso favor.
De certa forma, e em alguma escala, isso já vem sendo feito. Por exemplo, quando alguns métodos ágeis propõem o trabalho com times multidisciplinares, há aqui uma modesta proposta de emaranhamento intradisciplinar. Digo modesta pois, além de estar focada em um resultado de tipo previsível (já sabemos que farão um software), ela não extrapola as competências muito além deste tipo de produto.
Importante ressaltar que, neste caso, a limitação no emaranhamento não é necessariamente ruim — pelo contrário. Considerando que, na maioria das vezes, o nível de complexidade em desenvolvimento de software não é tão alto (1), não há necessidade de forçar um emaranhamento maior. Justamente por isso, quando muitas empresas tentam ampliar demasiadamente os limites dos “times ágeis” acabam não alcançando resultados satisfatórios e retornando ao formato de time de produto (2). Indo além, em alguns contextos mais claros ou pouco complicados, até mesmo o emaranhamento intradisciplinar desses times deixa de fazer sentido (3).
Estratégias mais amplas de emaranhamento se mostram necessárias para explorar adequadamente níveis de complexidade não alcançáveis em estruturas mais fechadas. O que, se não é verdade para times de produto, se torna brutalmente real para o contexto dos negócios.
Empresas querem ser mais ágeis, mas também mais rápidas, humanas, eficazes, eficientes, robustas, lucrativas, atrativas, poderosas, escaláveis, admiradas… e muito mais.
Ao combinarmos a contradição de alguns desses elementos, chegamos facilmente às tais questões maliciosas (wicked questions) anteriormente mencionadas.
Além do mais, quando estamos trabalhando para, por exemplo, aumentar a agilidade de uma empresa… o que exatamente estamos construindo? Qual será o resultado do nosso trabalho? Processos, novas competências, relações, métodos, ferramentas, mindset? Como no trabalho de Brian Eno, sim ou não, seriam ambas respostas plausíveis para todas estas perguntas.
Dessa forma, se práticas que olham para o Agile Manifesto não dependem tanto de altos níveis de emaranhamento, a Business Agility está pisando em um território totalmente dependente destes.
Por essa razão, me parecem controversas estratégias para Business Agility que olham para as organizações a partir de níveis que precisam ser alinhados e conectados (operacional; coordenação; estratégia, por exemplo). Da mesma forma, vejo como limitadas as estratégias que focam demasiadamente em um único tema organizacional (estrutura, ou fluxo, ou pessoas, por exemplo).
Percebo cada vez mais que estratégias para agilidade nos negócios deveriam partir de questões maliciosas para, então, trabalhar explicitamente de forma multitemática, e não monotemática, ou seja, emaranhando os diversos temas que existem nos negócios de qualquer empresa.
Neste raciocínio, alinhar pessoas a uma estratégia de negócios, por exemplo, não seria suficiente para lidar com o nível de complexidade existente — nesses casos, deveríamos construir “algo” que emaranhasse ao menos esses dois temas (pessoas e estratégia).
(1) Utilizando linguagem do Cynefin para apontar que, em sua maioria, contextos de desenvolvimento de software estão em uma área liminal entre alta complicação e baixa complexidade.
(2) Quando se tenta incluir nos times capacidades não relacionadas ao desenvolvimento do produto.
(3) Contextos onde trabalhar com unidade de indivíduos, e não de times, se mostra ser uma solução mais apropriada.
BUILD e seus Temas Organizacionais
Em artigos anteriores, eu apresentei vários detalhes das Etapas do BUILD (Brief, Sense, Design), mas pouco falei sobre seus Temas Organizacionais, que também representam uma parte importante desta estratégia para agilidade nos negócios.
Temas Organizacionais são aqueles que permeiam a grande maioria das organizações, sendo portanto livres de contexto. Eles existem, independentemente de serem mencionados ou não, e são determinantes na cultura de uma empresa.
A atual lista dos Temas Organizacionais do BUILD, que está em constante evolução, é composta por 14 temas que foram observados como predominantes em grande parte das organizações ao longo das nossas pesquisas, experimentações e aplicações.
- Modelos de Negócio
- Estruturas
- Controles
- Fluxos de Trabalho
- Tomada de Decisão
- Ferramentas
- Identidades
- Relações
- Comunicação
- Rituais
- Qualidade
- Aprendizagem
- Estratégias
- Valores
Importante ressaltar, caso ainda não esteja claro, que por mais que haja coerência em estuda-los separadamente, os temas quase sempre se manifestam de forma emaranhada, muitas vezes inclusive perdendo sua característica temática inicial. Por exemplo, um problema de Qualidade pode estar tão emaranhado com os temas Controles e Fluxos, que deixa de demonstrar as características de um problema de qualidade.
Tais manifestações emergem ao longo das etapas do BUILD em 5 diferentes formatos: rumores, padrões, heurísticas, propriedades e práticas.
Rumores
Como mencionei aqui, no BUILD reconhecemos que, infelizmente, os rumores podem exercer uma influência enorme no processo de tomada de decisão nas organizações. Justamente por isso, ainda no Brief, identificamos alguns dos rumores predominantes no contexto, e já nesta etapa utilizamos lentes que nos ajudem a identificar o emaranhado de temas presentes no rumor.
Por exemplo, na imagem ao lado compartilho um dos rumores identificados em uma dinâmica de Brief. Ao olharmos para este rumor com as lentes do BUILD, percebemos o emaranhamento de alguns dos Temas Organizacionais: modelos de negócio, relações, estratégia, qualidade e, possivelmente, estrutura. Perceba que qualquer alternativa monotemática que fosse aplicada, rapidamente utilizaria alguma ferramenta ou técnica à procura de uma simples relação de causa e efeito para resolver o problema (“Se mudar o modelo de negócios resolve!”).
No BUILD, este é um momento no qual reconhecemos que sequer sabemos se temos mesmo um problema pois, afinal, ainda estamos trabalhando com um rumor, algo que não foi validado ainda. Mesmo com tamanha incerteza, no entanto, já é sim importante olharmos para os Temas Organizacionais, pois eles tem potencial para nos ajudar a montar os scaffoldings (andaimes) na etapa Sense.
Padrões
Uma vez que um padrão de narrativa emerja durante a etapa Sense, também realizamos um trabalho para identificar o emaranhado de Temas Organizacionais presentes naquele padrão.
Vale observar que, algumas vezes, esses padrões emergentes reconhecem um rumor já apontado na etapa Brief; mas muitas outras vezes, temos aqui algo que surpreende os envolvidos e que sequer vinha sendo apontado como um dos bloqueadores de agilidade na empresa.
No exemplo acima, temos um padrão que surgiu a partir da compilação de 38% das narrativas coletadas na empresa, ou seja, um padrão com convergência alta. Tal padrão apresenta novamente um emaranhado de temas: identidades, fluxo, comunicação, aprendizagem, e possivelmente outros. Novamente, tentar resolver tal situação olhando apenas para um tema seria de impacto bastante limitado.
Heurísticas
Ainda durante a etapa Sense, tentamos identificar heurísticas para os padrões de emaranhamento. Isso nem sempre é fácil, e muitas vezes inalcançável, já que heurística para nós não é apenas uma série de suposições.
Na linha de Stafford Beer, que é a que seguimos no BUILD, uma heurística é um conjunto coerente de instruções que lhe ajuda a explorar um objetivo ainda desconhecido. Elas são importantes para não lhe deixar paralisado pelo fato de ainda não possuir informações precisas sobre algo, sendo importante possuir critérios claros de formação e validação.
No nosso caso, a partir da compilação das narrativas, criamos alguns critérios para identificar heurísticas que revelem como os emaranhamentos entre temas são formados naquele contexto. Isso, quando possível, nos permite trabalhar diretamente com eles, e não apenas com os padrões isolados.
No exemplo ao lado, temos uma heurística que aponta para um forte emaranhamento entre os temas: estrutura, tomada de decisão, aprendizagem e relações. Ao avançarmos para trabalhar com esta heurística na etapa Design, reconhecemos que ações monotemáticas — neste caso — teriam efeito limitante, podendo inclusive piorar o contexto.
Propriedades
Na etapa de Design, propriedades emergentes para o modelo de agilidade da empresa ganharão vida a partir das restrições, recomendações e propensões, que são organizadas em volta do emaranhamento dos Temas Organizacionais.
Essas propriedades do Modelo “Sua Empresa” são justamente respostas aos padrões e heurísticas que, durante o Sense, se apresentaram como bloqueadores para a agilidade dos negócios da empresa.
Elas são organizadas a partir dos Temas Organizacionais, mas sempre estando emaranhadas, direta ou indiretamente, em mais de um tema. Ou seja, uma restrição do tema “Estrutura”, por exemplo, pode ocasionar na inclusão de uma nova restrição ou recomendação nos temas “Tomada de Decisão” e “Aprendizagem”.
Práticas
A partir do Modelo “SuaEmpresa” já composto por propriedades multitemáticas, pessoas irão organizar seu trabalho a partir de instâncias que sejam coerentes ao modelo, mas que tenham autonomia de prática.
Portanto, se nessa empresa um grupo de pessoas quiser utilizar uma estrutura de “squads”, enquanto que outro prefere uma estrutura de “hierarquia centralizada”, eles terão que avaliar a coerência de ambas as práticas com as propriedades do modelo. Havendo coerência, cada um pode aplicar a prática que julgar mais apropriada.
Um ponto importante aqui, é entender que, em sua maioria, práticas também possuem um emaranhado de temas. Por exemplo, a prática de “squads” é vista materialmente como do Tema Organizacional “Estruturas”, mas que indiscutivelmente está emaranhada a outros temas, como “Identidades”, “Relações”, dentre outros.
Esse comportamento é o que, muitas vezes, faz como que uma prática seja ineficaz ou mesmos desastrosa em um contexto, já que as escolhemos focando em um único tema, ignorando seu impacto no emaranhamento com diversos outros temas.
Conclusão
No final dos anos 2000 (circa 2008/2009), Brian Eno lançou Bloom e Trope, ambos aplicativos para iOS que permitem que qualquer pessoa crie melodias únicas que emaranhem composição, som, arte e engenharia — ambos muito associados ao seu trabalho de música ambiente. Ao que tudo indica, o que ele busca com esse trabalho é fazer com que todos tenham a oportunidade de “ser” Brian Eno, ou seja, todos tenham capacidade de criar emaranhamentos de forma consciente e estética e, com isso, gerar algo inovador, contextual e significativo. É tornar o potencial da música generativa acessível a todos.
De certa forma, essa é uma ótima analogia para retratar o que acontece com as empresas que praticam o BUILD. Digo isso pois, a partir desta estratégia, as empresas desenvolvem a capacidade de significar seus contextos e trabalhar conscientemente com seus emaranhamentos, culminando em um modelo que equilibra agilidade na busca pelo que verdadeiramente importa: o sucesso do negócio. É um passo importante para o que poderíamos chamar de agilidade generativa.